Prometo que não vou reclamar novamente dos altíssimos impostos cobrados sobre os vinhos no Brasil. O assunto é outro. Sou só eu ou mais alguém percebe que está na moda falar mal de quem gosta de vinhos? Em alguns círculos e na mídia em geral, parece que o legal é ironizar quem demonstra um interesse mais sério a respeito de vinhos. Basta você tentar sentir o aroma de um deles em um restaurante mais descolado que alguém da mesa do lado olha torto, com ar superior, como quem diz "olha aí mais um enochato"! Às vezes, até mesmo alguém da sua mesa solta uma gracinha a respeito.

Pior! Todo texto de colunista ou blogueiro mais esperto, até os que tenho em alta conta, não perde a oportunidade de dizer o quanto é ridículo girar taça em público, que não se deve enfiar o nariz no copo, que é bobagem olhar a rolha, etc... E todos pregam na testa do coitado do enófilo o epíteto "enochato". Já soube de conhecidos que, apesar de gostarem de bons vinhos, intimidam-se de pedi-los em público. Passaram a pedir cervejas mais finas. Mas, mesmo assim, disfarçam ao "cheirar" a bebida para não serem censurados ou ironizados.

Me pergunto qual seria a razão desta fúria. Inveja da sensibilidade alheia? Medo do desconhecido? Preguiça? Necessidade moderna de parecer tosco para ser interessante? Ou todas as anteriores? Pela minha experiência no mundo da música, aposto na última alternativa. É um estranho fenômeno moderno, este. Moderno no sentido do início do século XX. Mas que agora chegou até à classe média.

Para ser cool e sofisticados, temos de ser desleixados, proto-ignorantes. Temos de valorizar a estranheza e não gostar do que seria de bom tom gostar. Somos todos um pouco dadaístas, um pouco snobs e, por que não, um pouco toscos! Mas com "atitude".

Por que cair de pau justamente nas "enopessoas"? Há chatos muito piores e mais ruidosos. Os cinéfilos, por exemplo. Outro dia quase saí correndo ao escutar as bobagens que uma atriz cult vomitava na fileira de trás do cinema para suas duas amigas! Mas não me ocorreu chamá-la de "cinechata"... E os maníacos por futebol? Alguns beirando o insuportável. E sem freios civilizatórios. Quem os trata por "futechatos"? E os nerds? E os geeks? A lista é enorme.

O termo enochato se disseminou de tal maneira que passou a ser arremessado contra qualquer pobre apreciador de vinho. Além disso, é uma jabuticaba! Só existe no Brasil. Há o wine bore em inglês mas não é exatamente a mesma coisa. Ou o arcaico italiano enolaio. Mas não destilam o mesmo preconceito contra o cidadão que tenta simplesmente degustar seu vinhozinho sem fazer mal ao próximo.

É claro que há chatos em qualquer atividade, trabalho ou hobby. E provavelmente um ou outro novo rico, snob e chato pode ter irritado muita gente com seu papo de vinho. Talvez até mesmo algum inocente apreciador mais entusiasmado tenha atravessado um pouco a linha da chatice. Mas, convenhamos, a reação da sociedade foi exagerada: cunhou um neologismo!

Penso tudo isso após um jantar com Maurizio Zanella, o proprietário, enólogo e ideólogo da Ca' del Bosco, uma estrela da Franciacorta, região que produz o melhor espumante da Itália. Do nível dos melhores Champagnes.

Seu charme despojado, entusiamo e conhecimento de causa nos remete a um mundo em que apreciar vinho é a coisa mais natural. Um mundo onde não existem nem enochatos nem seus críticos. Um mundo no qual todos somos curiosos, honestos e sem preconceitos.

Zanella contou sua trajetória de estudante relapso de uma família sem tradição vitivinícola a produtor de vinhos finíssimos (e caros) com humildade e bom humor. Contou-nos que, ironicamente, os jogadores brasileiros do Milan, clube do qual é conselheiro, têm um grande interesse e uma cultura de vinhos maior do que a dos jogadores italianos. Confirmou, inclusive, que o capitão Cafu é um connaisseur.

Criticou fundamentadamente as taças flûte para beber espumantes mais encorpados e aromáticos como os Franciacorta e Champagnes. E mais, enfiou no copo seu nariz italiano despudoradamente para apreciar os deliciosos aromas de seus vinhos. E por que não seria assim? Afinal, ele nem sabe da existência dos enochatos. E não tem nenhuma razão para se sentir intimidado pelos "espertochatos".
 
Vinho degustado

Cà del Bosco Franciacorta Brut 2003
Mistral: R$ 245,52

Um corte de Chardonnay, Pinot Nero e Pinot Bianco. Cor quase dourada, aroma complexo de tostados e leveduras. Encorpado e com acidez delicada, sem excesso de cítricos ou frutas tropicais. Final longo e muito elegante. Não é à toa que a prestigiada revista Gambero Rosso classifica Ca'del Bosco como o segundo melhor produtor da Itália.
Apresentação
Mauricio Tagliari é compositor e produtor musical. Sócio da ybmusic, escreve sobre música e bebidas no blog www.maisumgole.wordpress.com e sobre música no ybmusica.blogspot.com. É co-autor do Dicionário do Vinho Tagliari e Campos e colunista do Terra Magazine.
Comentários
João Montarroyos
Mestre Equitador
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Certo, certíssimo, eu pouco me importo com os "enoidiotas", "bebo" tintos no verão, no inverno, na primavera ou no outono; em qualquer lugar do mundo, afinal a água foi transformada em vinho e não em cerveja.
Cesar Martinz Velasco
Representante da Sanjo
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Concordo plenamente, tirando os boçais, é bonito de ver o ritual do vinho. Meu apoio total aos enófilos.
João Elvecio Faé
Administrador
Vitória
ES
19/01/2010 Bom dia.

Aqui em Vitória, também passamos por este tipo de discriminação boba, e como frequentador de duas confrarias, conversando com outros enófilos, resolvemos que de maneira alguma vamos deixar de curtir nosso vinhos, em qualquer lugar. Desprezamos e não ouvimos qualquer comentário destas pessoas que considero ou invejosas ou preguiçosas, para ler e entender uma cultura milenar que além da historia, está provado que o vinho faz bem para a saúde e para a mente.

Parabéns pela coluna.

Abraços.
JEFaé.
Rene Alfredo Schirr
Enófilo/enopessoa
Pato Branco
PR
19/01/2010 CARO MAURICIO TAGLIARI

Parabéns pela crônica, leve, alegre, divertida. Conheço muitos amigos que faziam as aludidas criticas e piadas, mas que passaram a beber vinhos e estáo gostando. Quem sabe trata-se de um "ritual de passagem"?

Acho que o mundo esta evoluindo para melhor.

Um abraço
Cláudia Holanda
Compositora, jornalista
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Apoiado, apoiadíssimo! Semana passada fui vítima desse tipo de agressão (sim, isso é uma agressão) só porque comecei a balançar suavemente a minha taça. Não deu outra, minha amiga ao lado falou que essa mania era tudo palhaçada. Eu nada falei pra não parecer pedante e segui em frente curtindo meu vinho em silêncio. Fazer o que?
Carlos Reis
Enófilo
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Excelente artigo!

Um grito contra a massificação da ignorância e contra os recalcados! Parabéns pela coragem de escrever um artigo que se posiciona contrariamente ao "pensamento dominante"!

Carlos Reis
Pablo Fest
Barman e enófilo
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Concordo... e isto vale para qualquer tipo de apreciação... Sempre procuro aprofundar-me nos pratos e bebidas, por mais simples que sejam. Perguntar, questionar... Mas sempre sofro preconceito...

Recomendo a todos que procurem, no caso dos vinhos, apreciá-los nas casas onde compram, mesmo que não haja mesa ou local adequado.
Roberto Franco
Médico
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 Excelente e oportuna colocação.

Com esse verãozão, os espumantes caem muito bem. Pena que no meu caso, esse em particular, só dá para ser nas quatro festas do ano!
Flavio Pimenta
Apreciador
Salvador
BA
19/01/2010 Caro Maurício,

Muito interessante seu artigo, ele me remeteu às diversas situações pitorescas que passei enquanto apreciador de um bom vinho. Mesmo quando me encontro em um bom restaurante, que possui uma bela carta de vinhos, ainda há aqueles que "torcem o nariz" para quando sentimos o aroma do vinho, ou até girar a taça para ter no olhar os adjetivos deste.

Porém, posso atestar que cada vez mais vejo pessoas se inserindo nesse "enomundo", principalmente aqui no Nordeste.

Quero sempre ser ironizado pelos meus atos em um bom restaurante, mas nunca deixarei de apreciar de maneira peculiar um bom vinho.

Abraços,
Jorge Barbosa
Enófilo
Rio de Janeiro
RJ
19/01/2010 E eu lá vou me preocupar com o que pensa alguém que está tomando um chopp de 3 reais, quando me delicio com um vinho de 300? Aliás, essa pessoa não deveria nem estar nesse restaurante!
Rodrigo Castello Branco
Apreciador das boas coisas
São Luís
MA
19/01/2010 Belo artigo.

Só faltou citar os mais chatos dos chatos: os patrulhochatos.

Um abraço.
Olga Martino
Professora de enogastronomia
São Paulo
SP
20/01/2010 Parabéns! Vou ler para meus alunos da Faculdade de Gastronomia.
Geraldo Lima
Sommelier
Curitiba
PR
20/01/2010 Maurício,

Muito oportuno seu manifesto. É lamentável a confusão que algumas pessoas fazem entre elegância e pompa desvairada na ritualistica do vinho. Particularmente não dou muita bola para olhares alheios, mantenho a atenção nele, no vinho.

Parabéns.
Tereza Albuquerque
Arquiteta
Rio de Janeiro
RJ
20/01/2010 Me lembro de, ainda menina, ouvir na aula de Educação Cívica que "sua liberdade termina onde começa a liberdade do seu próximo". Essa é a medida certa!

Assim temos nós, enófilos, o direito de apreciar nossos vinhos da forma que nos aprouver, não cabendo a ninguem a deselegância de contestar, sem ultrapassar tão sábia medida.
Gláucia Helena Barbosa
Psicanalista e enófila
Rio de Janeiro
RJ
20/01/2010 Prezado Maurício

Para entrar para a ABS e mergulhar na maravilhosa cultura do vinho, precisei enfrentar uma barreira de preconceitos em minha própria casa. Explicação? O que é novo incomoda, intimida, provoca insegurança, desconfiança, inveja e até agressividade (como o rótulo de "enochato"). A boa notícia: hoje sou a consultora da família e amigos para assuntos enológicos.

Abraços e parabéns pelo artigo.
Gláucia Barbosa
Ahnis Fraga
Analista de suporte
Rio de Janeiro
RJ
22/01/2010 Excelente colocação! Enochato é mais um rótulo social que temos que aturar dos eternos críticos, os "critichatos" espalhados por ai - a grande maioria fica ao nosso ladinho a mesa.

Sempre que passo por tal situação, olho meu amigo crítico - sim, muito comum acontecer entre os amigos a mesa tal piadinha - e digo: Pena não explorar sua sensibilidade para alcançar a beleza desta complexidade líquida! E brindo, ao vinho, que muito me dá prazer. Adoro ver a cara do "cool e descolado" ficar sem graça! rsrsrsrs
Alexandrina Ferreira
Jornalista
Rio de Janeiro
RJ
22/01/2010 Maurício,

Seu artigo lavou a minha alma, que sempre é banhada pelos melhores vinhos que meu bolso deixa eu degustar.

Obrigada.
Gilberto Cavalcanti Varejão
Sommelier
Rio de Janeiro
RJ
04/02/2010 Prezado Mauricio.

E muito bom esclarecer esse ponto, para separar o enófilo que quer se desenvolver no mundo do vinho, do que quer apenas se exibir, já que falta propriedade. Realmente muitos enófilos deixam de degustar um vinho por causa dessa onda dos enochatos, o que não pode acontecer.

O meu apoio aos enófilos é total, vamos girar a taça, sim.
EnoEventos - Oscar Daudt - (21)9636-8643 - [email protected]