
Em 1716, a família Médici escolheu a minúscula Carmignano como uma das 4 melhores regiões do Grão Ducado da Toscana para a produção de vinhos. E estabeleceu regras precisas para a produção, definiu os limites geográficos e regulamentou o comércio de vinhos dessas regiões escolhidas. Claro que, com isso, os italianos buscam para si a primazia de primeira DOC do mundo, normalmente atribuída à região do Douro.
E muito antes que os super-toscanos lançassem a moda de cortar a típica Sangiovese com Cabernet Sauvignon, Catarina de Médici, no século XVI, já havia importado essa casta francesa para Carmignano, no que veio a se tornar uma tradição na vinificação local. Hoje em dia, as normas da DOCG exigem que os vinhos tenham de 10-20% de Cabernet misturada às outras castas autóctones.
É, portanto, uma região à frente do seu tempo.
Antes de participar de um evento, eu costumo pesquisar informações sobre os vinhos a serem degustados e, lendo The Wine Bible, de Karen MacNiel, aprendi que na região de Carmignano o melhor produtor, segundo voz italiana corrente, é a Tenuta di Capezzana, justamente o produtor que a Importadora Mistral apresentou no almoço, para poucos felizardos, realizado na Osteria dell'Angolo, em Ipanema.
História é o que não falta à Capezzana e, registrado em cartório com firma reconhecida, sabe-se que essa vinícola, já no longínquo ano de 804, plantava uvas e azeitonas para a produção de vinhos e azeites. Ao longo desse tempo todo, a propriedade trocou várias vezes de mão - mas mãos em que sempre corria o sangue azulado - inclusive os poderosos Médicis, que construiram a Villa que atualmente é a sede da Tenuta.
No início do século XX, o conde Alessandro Contini Bonacossi adquiriu a propriedade que permanece, até hoje, sob o comando da família. A geração atual - 4 irmãos - divide a responsabilidade pela operação da Capezzana, num negócio que permanece estritamente familiar. E foi a condessa Beatrice Contini Bonacossi - uma das irmãs - que veio ao Rio de Janeiro para apresentar seus vinhos, todos com muito pedigree.
A degustação se iniciou com a apresentação daquele que a condessa chamou de "my child", o Capezzana Trebbiano 2006, visto ter sido dela a idéia de elaborar um vinho com a casta branca mais típica - e mais maltratada - da região. Mas é claro que a Capezzana não iria comprometer sua reputação com o lançamento de mais um dos tristes Trebbianos que abundam por lá. Aproveitando vinhedos de mais de 60 anos, utilizados para a elaboração do Vinsanto, as uvas são deixadas no pé, sobrematurando, e só são colhidas depois que todas as outras castas, brancas e tintas, tenham sido retiradas dos vinhedos. Com o repouso de 15 meses em barricas de carvalho francês - com pequeno percentual de novas - resulta em um vinho cremoso, intenso, mineral e com delicioso toque de oxidação, que desde sua primeira safra, em 2000, vem colecionando avaliações apaixonadas do Gambero Rosso e do Duemilavini. Aproveitei e pedi a Beatrice minha carteirinha de sócio-atleta do Clube Trebbiano.
A seguir, um tinto sem madeira, Barco Reale di Carmignano 2007 que é apresentado como o "segundo vinho" da casa, muito embora a linha de tintos possua outros quatro rótulos de qualidade superior. Corte de Sangiovese, Cabernet Sauvignon e Canaiolo, foi escolhido por Beatrice como seu vinho para o dia-a-dia. Foi servido para harmonizar com uma polenta ao funghi, mas eu preferi continuar com o Trebbiano que ainda havia no copo, para os olhares horrorizados de meus pares.
O taglatelle com ragu de cordeiro mereceu a companhia de dois rótulos: o Trefiano Carmignano 2004 e o Villa di Capezzana Carmignano 2006. Ambos são cortes de Sangiovese e Cabernet, mas o primeiro conta com ainda com alguns cachinhos de Canaiolo. O primeiro foi meu vinho preferido dentre todos os provados naquela tarde: sofisticado, complexo e etéreo. Só reclamei do nome, Trefiano, que me pareceu uma forma de confundir os consumidores, por ser demasiado parecido com Trebbiano. A condessa concordou, mas explicou que esse era o nome histórico de uma Villa do século XVI onde está localizado o vinhedo. O segundo vinho, no entanto, era potente, com mais estrutura tânica e deliciosos toques de baunilha no nariz e uma companhia muito mais adequada ao cordeiro.
O contra-filé também foi abençoado com a companhia de dois vinhos: o primeiro era o Ghiaie della Furba Carmignano 2003, um vinho de nome complicado desenvolvido para ser um corte bordalês clássico, mas que em suas safras mais recentes trocou a Cabernet Franc pela Syrah e resultou em um tinto potente, suculento, aveludado e interminável. O segundo escorte era o Capezzana 804 2004, comemorativo aos 1200 anos (!!!) da vinícola, com uma produção de apenas 300 caixas que não mais se repetirá. 100% Syrah, era novinho e parecia que havia sido engarrafado ontem. No entanto, a etiqueta de preço assusta, e pelos mesmos 243 dólares eu prefiro comprar 3 garrafas do delicioso Trefiano ou 4 garrafas do surpreendente Trebbiano.
O mistério do vinho desaparecido |
Ao final, como de costume, não bebi o Vinsanto di Carmignano Riserva 2002, mas como por milagre a minha intocada taça apareceu, de repente, vazia. A meu lado estava sentada Luciana Plaas...
Oscar Daudt |