
A Borgonha é, acima de tudo, uma mística que encanta os apaixonados pelo vinho.
Com uma estrutura fundiária ensandecida, em que não são raros os casos de proprietários de apenas 1 ou 2 fileiras de vinhas e com um sistema de denominações inalcançável para a maioria dos apreciadores, com 5 regiões - Chablis, Côte de Nuits, Côte de Beaune, Côte Chalonnaise e Mâconnais - divididas em centenas de denominações classificadas em diversos níveis - regionais, villages, premiers crus e grands crus - quase todas elas com nomes impronunciáveis e hifenizados, a Borgonha é muito melhor bebida do que compreendida.
Contrastando com essa confusão acima, estão as castas autorizadas: se é branco, é Chardonnay, se é tinto, é Pinot Noir. Não me vem à cabeça outra região do mundo em que o sistema de castas seja assim tão simples e direto (antes que reclamem, existem algumas exceções, mas são tão desimportantes no panorama vinícola borgonhês que podem ser omitidas sem prejuízo algum).
Tudo isso colabora com o mistério e o encanto de seus vinhos, posicionados dentre os mais caros, exclusivos e disputados do mundo inteiro. Um grande Borgonha branco é um espetáculo de elegância e complexidade, revelando-se em função de sua origem: se for um Chablis, será vivo e mineral; se for um Côte de Beaune, concentrado e cheio de finesse ao mesmo tempo, com aromas de nozes e até mesmo de trufas. Um grande Borgonha tinto é posicionado dentre os vinhos mais sensuais do mundo, com seus inebriantes aromas terrosos e de caça.
Não bastasse a complexidade atual, os borgonheses agora querem tornar as coisas ainda mais complicadas. Os enófilos sempre tiveram uma grande dificuldade de entender o conceito de terroir, principalmente nós, de língua portuguesa, que tendíamos a traduzir por um prosaico "terreno". Não era isso e ia muito mais além. Mas quando parece que a maioria dos apreciadores começa a entender esse conceito, desponta, das terras borgonhesas, uma nova e intrincada definição.
Conforme nos foi explicado, hoje em dia "até o Chile" usa o conceito de terroir (não me perguntem o que significa esse "até"). E, claro, a sofisticada Borgonha não poderia conviver com essa massificação. Portanto, eis que surge de dentro das caves milenares daquela região, uma nova buzzword: CLIMAT. Outra vez, para nosso azar lusitano, essa palavra quer dizer, em francês, simplesmente "clima". E muitos anos ainda se passarão até que todos consigam internalizar que esse novo bordão quer dizer bem mais do que simples condições climáticas.
Tentando esclarecer, "climat" designa cada parcela ou grupo de parcelas de vinhedos - e só na Borgonha - conhecidas pelo mesmo nome há muitos séculos. A localização, o solo, o sub-solo, a exposição solar, o micro-clima e, em particular, a história associada e o trabalho humano por lá desenvolvido. Tudo isso em apenas 6 letrinhas! Mas, sei não, parece-me que o novo conceito pode ser resumido pela fórmula: CLIMAT = TERROIR + HISTÓRIA. É muita complicação e eu já estou achando que é melhor simplesmente abrir um bom Borgonha e desfrutá-lo sem pensar em mais nada...
O grande dia começou com um almoço oferecido à imprensa, onde vinhos, escolhidos a dedo, foram harmonizados com a sempre espetacular cozinha do chef Roland Villard, do Pré Catelan. Foram dois brancos - Chablis e Pouilly-Fuissé - e quatro tintos - Mercurey, Clos de Vougeot, Mazoyeres Chambertin e Mazis-Chambertin. Só eles já bastariam para valer o dia...
Mas depois do almoço, fui passear na feira, livre, leve e solto. E sem pauta, me dediquei unica e exclusivamente aos brancos, formando um painel inigualável da diversidade dessa cor. Uma só casta e tantos vinhos diferentes! Foi um dia para guardar no escaninho das boas lembranças no "climat" mais prestigiado da minha massa encefálica.
Há alguns anos, uma promotora de eventos paulista me contou que as diversas profissionais da área respeitavam uma agenda comum, em São Paulo, para evitar que as degustações, almoços e feiras coincidissem na mesma data. Como os eventos cariocas são organizados, na maioria das vezes, na capital paulista, imaginei que essa agenda fosse extensiva aos eventos do Rio de Janeiro. Só que não foi bem isso o que ocorreu.
No mesmo dia 19, na mesmíssima hora em que acontecia esse importante Bourgogne Wine Tour, também realizavam-se outras duas mega-feiras de vinho: a da Adega Alentejana e a da World Wine. Arrisco-me a dizer que o Rio não tem público para tudo isso e a imperdoável coincidência deveria ter sido abortada.
Tomara que essa infeliz simultaneidade tenha servido, pelo menos, como experiência e que no futuro possamos evitar a programação de mais de um grande evento para o mesmo dia. Não é justo para os enófilos e muito menos para os patrocinadores, que investem fortemente nessa divulgação, trazendo produtores do exterior e ao final têm de dividir o público-alvo com outros concorrentes.
Oscar Daudt
23/04/2012 |