
Poucos se lembrarão - ou então nem ouviram falar - do genial filme do diretor espanhol Luis Buñuel, Viridiana, realizado em 1961, em plena ditadura franquista. A obra, eivada de críticas à Igreja e à própria situação política da Espanha, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, mas causou grande escândalo à época, tendo sido proibida em seu país de origem e custou ao diretor uma ordem de prisão, na Itália, caso pusesse os pés por lá. A cena mais marcante do filme é a orgia dos mendigos numa referência direta ao quadro de Da Vinci, A última ceia (vale a pena recordar esse momento genial - ou conhecê-lo - clicando aqui).
Quando o chef espanhol Abraham Garcia, ainda jovem, deixou sua cidade natal de Toledo e foi trabalhar na Taberna do Jacobo, em Madri, teve a oportunidade de conhecer Buñuel, frequentador assíduo da casa e daí nasceu uma amizade entre os dois. Quando Abraham pode abrir seu próprio restaurante, homenageou o amigo já falecido, batizando-a de Viridiana.
Atualmente, seu restaurante é um dos mais prestigiados da capital espanhola, onde desenvolve uma gastronomia de raízes, tradicional, sem tentações modernizantes. Explica o chef: "Minha cozinha é de sabor e caráter!" E eu acrescento: "De fartas porções", como não estamos acostumados na alta gastronomia.
O chef é uma figura interessantíssima. Além da gastronomia e do cinema, é um apaixonado pela etimologia das palavras e nos deu algumas aulas, mostrando como uma simples focaccia pode se transformar em um ato libidinoso. Mas sua maior paixão são as corridas de cavalo, que ele definiu - para o rubor das donzelas presentes - como "a melhor coisa que se pode fazer vestido".
À convite do restaurante eñe, Abraham veio ao Brasil para mostrar o porquê de seu Viridiana ser tão prestigiado na Espanha, e apresentou 3 jantares - 2 em São Paulo e 1 no Rio de Janeiro. E eu tive a alegria de ser convidado para participar dessa noite única e especial.
Logo na primeira entradinha, um original Escabeche de rabanete com raspas de limão, a mesa foi perfumada com um indizível aroma que introduzia o exótico sabor. E nova experiência olfativa inebriou o ambiente com a chegada do Guacamole de manga com vieiras grelhadas, em que a acidez das frutas fazia o contraponto com a textura aveludada das vieiras, ricamente defumadas.
Mas o melhor da noite foi mesmo o Lombo de peixe-espada com azeitonas verdes e "papas aliñás": a leveza do peixe era acompanhada por azeitonas - que levaram a crítica Bruna Talarico a confessar que há muito tempo não as comia sem excesso de sal - e, outra vez, pela acidez das batatas que, em sua receita típicamente andaluz, trazia energia ao prato.
Na expectativa do prato principal, o Rabo de touro ao jerez amontillado com trigo, uvas passas e açafrão, distraidamente declarei que nunca havia comido essa parte da anatomia bovina. Quase apanhei... pois me alertaram que isso não passava de nossa conhecida rabada. Só que não era com agrião, mas sim escortada com soluções bem mais ibéricas.
Em suma, a cozinha do chef tem seu DNA bem marcado: a acidez viva é obrigatória; para os pimentófilos como eu, sempre há um toque picante, às vezes nem tão discreto; as frutas são ingredientes comuns; os aromas são essenciais; e, conforme já falei acima, as porções são generosas, muito generosas... Quem for a Madri, não pode perder!
Oscar Daudt
24/08/2012 |