
O município de Dom Pedrito, com seus 39.000 habitantes, fica localizado na Campanha Gaúcha, na fronteira com o Uruguai e é vizinho de seu irmão mais importante e conhecido: Santana do Livramento. Historicamente, a Campanha teve sua economia baseada na pecuária extensiva em grandes propriedades rurais. Mais recentemente, no entanto, os fazendeiros da região passaram a buscar outras alternativas de produção e atualmente o arroz, a soja e o milho são importantes culturas.
No entanto, o setor da economia que parece apresentar o mais espetacular desenvolvimento é a vitivinicultura. Até 2002, havia apenas duas vinícolas na Campanha: a Almadén e a Santa Colina. Em 10 anos, esse número deu um grande salto e atualmente são quase 20 as empresas por lá instaladas. E Dom Pedrito orgulha-se de ser um dos principais pólos, contando atualmente com 4 vinícolas: além da Guatambu, o município é o endereço da Camponogara, da Dunamis e da Dom Pedrito Vinhos Nobres.
E a importância do vinho para a cidade pode ser atestada pela instalação do curso de Enologia da Universidade Federal do Pampa, há dois anos, justamente em... Dom Pedrito. Com certeza, havia muitos municípios disputando esse privilégio. É fácil prever que essa conquista será um poderoso impulso para o desenvolvimento do setor e pode-se esperar, em poucos anos, que os quadros formados provoquem a proliferação de muitos empreendimentos, não só na cidade, mas em toda a Campanha.
A região do Pampa, apesar do grande número de vinícolas importantes, ainda não entrou na rota do enoturismo. Pesam contra esse desenvolvimento a distância de Porto Alegre (são 6 horas de ônibus até Dom Pedrito), as distâncias internas - a Campanha tem extensão territorial maior do que todo o estado do Rio de Janeiro - e a estrutura incipiente para a recepção de turistas. Mas é objetivo da associação dos produtores desenvolver um programa integrado de atendimento aos visitantes e alguém teria de ser o primeiro a apostar na ideia.
O pioneirismo coube à Guatambu, que inaugurou, esta semana, sua espetacular sede com uma grande festa. E havia motivos de sobra para comemorar, pois foi o ponto alto de um investimento de impressionantes 6 milhões de reais para a realização do sonho de Valter José Pötter e de sua filha Gabriela Pötter.
A história começou quando Gabriela, recém-formada em Agronomia, convenceu seu pai, em 2003, a plantar uvas, uma promissora cultura na região, devido às condições ideais de clima e de solo. Na época, os dois nem cogitavam produzir vinhos, mas as uvas colhidas foram de tão boa qualidade que, em 2007, a família optou por elaborar seus próprios vinhos, começando a vinificá-los com o apoio e nas instalações da EMBRAPA.
Em 2011, com a vinícola já em construção, a produção passou a ser elaborada em sua própria adega. Atualmente, a vinícola conta com 22 hectares de vinhedos onde são plantadas as tintas Cabernet Sauvignon, Merlot, Tannat, Tempranillo e Pinot Noir e as brancas Chardonnay, Sauvignon Blanc e Gewürztraminer. A capacidade instalada é de 100.000 garrafas ao ano. Gabriela contou que há área física para aumentar a capacidade para 170.000 garrafas, mas que não há planos para crescer mais do que isso, posicionando a vinícola como de pequeno porte.
Na Serra Gaúcha, a vinicultura é essencialmente de origem italiana: por lá a arquitetura, a gastronomia, os costumes, o sotaque e o orgulho pelas tradições são todos italianos da gema. Quando essas empresas desceram a Serra em direção à Campanha, em busca de melhores condições de plantio, levaram esse viés na mala.
A Guatambu, no entanto, optou por quebrar esse paradigma e decidiu perseguir a própria essência da região, elaborando vinhos de bombacha que refletem a alma gauchesca. São vinhos próprios para harmonizar com a culinária pampeira, com nomes belíssimos e poéticos que homenageiam as tradições locais. Muito mais do que vinhos, são uma marcação de território. Os vinhedos se entrelaçam às culturas regionais e ao visitá-los é comum nos depararmos com o gado, as ovelhas e os cavalos, que tão bem representam a Campanha, pastando em meio às videiras.
Além de cultivar a história, a Guatambu fez a escolha estratégica de também preservar o futuro, com cuidados extremos para com o meio-ambiente. A energia é obtida através de painéis solares e, em breve, a vinícola atingirá a autonomia. O tratamento das videiras é feito com a limpíssima tecnologia do TPC (Thermal Pest Control) que utiliza apenas jatos de ar quente para o combate às pragas. O consumo de água também foi motivo de preocupação, com a captação da água das chuvas e o tratamento e reutilização da água consumida.
As instalações foram projetadas de olho na recepção aos visitantes, tanto para os enoturistas quanto para os eventos corporativos. Há um pequeno museu com itens que contam a história da Campanha, um auditório, uma boutique para venda de vinhos e cosméticos elaborados com as uvas, uma parrilla e um grandioso salão de eventos para 200 pessoas.
Atualmente, existem à disposição 4 programas enoturísticos: o Venha conhecer, o Venha degustar, o Venha harmonizar e - o mais interessante de todos - o Venha camperear, que inclui uma visita a cavalo aos vinhedos, com acompanhamento de um legítimo gaúcho pilchado.
Vinhos com a faca na bota |
A equipe de enologia é formada pela própria Gabriela, pelo uruguaio Javier Gonzalez e pelo seu conterrâneo Alejandro Cardozo, o mago dos espumantes, que assina algumas das borbulhas mais espetaculares do Brasil. A sinergia entre os três resulta em vinhos vigorosos, de faca na bota, "pero sin perder la ternura jamás!".
Fomos homenageados com uma especial vertical de Rastros do Pampa Cabernet Sauvignon, o premiado rótulo da vinícola, que começou com a safra 2007 (não comercializada) e foi até as recentes safras de 2011 e 2012, ainda nem engarrafadas. Enquanto a primeira safra oferecia fortes traços de evolução, mas com frutas presentes, as safras mais recentes ainda imploravam por uma boa guarda. O equilíbrio ideal ficou com a safra 2009, que parecia soprar o Minuano dentro da taça, um meio-termo entre a elegância de Gabriela e o vigor cisplatino de Alejandro. Como dizemos nós, os gaúchos, um "baita" vinho!
Embora tenha morado 30 anos em Porto Alegre, eu nunca havia experimentado - e nem ao menos ouvido falar sobre - um Espinhaço de ovelha, prato típico dos Pampas. Quando do almoço tipicamente pampeiro, oferecido na sede da fazenda, virei fã de carteirinha à primeira garfada, só lamentando todos os anos que havia perdido sem ter sido apresentado a ele. E, melhor ainda, escortado por um Rastros do Pampa Tannat 2012, um vinho para deixar o General Artigas cheio de preocupações em sua tumba. Delicioso, com o corpo musculoso de um cavalo e a maciez de um cordeiro, era a quintessência da Campanha.
E, finalmente, para aveludar o paladar, não posso esquecer do espumante lançado durante a festa de inauguração, o Guatambu Rosé Brut, com uma delicadeza exógena à Campanha e de um tom rosado de causar inveja à Provence.
Oscar Daudt
09/06/2013 |