 
A história do produtor João Afonso é tão improvável que mais parece ter sido escrita como enredo de mini-série de televisão. Após formar-se em Educação Física, em 1979, opta por ser bailarino profissional no então famoso Ballet Gulbenkian, onde chega a 1º bailarino e dança nos mais famosos palcos do mundo. Mas em 1993, no auge da carreira, decide encerrá-la e abandona a dança para voltar à modorrenta Castelo Branco, para poder criar seus filhos com mais qualidade de vida.
Mas acontece que, em 1983, ele havia recebido de presente de sua mulher o livro "Conhecer e Trabalhar o Vinho", de Emile Peynaud e desde então sua mente ficou focada nesse assunto. Ao chegar à província, elabora seu primeiro vinho, um Beira Alta, com os vinhedos de sua família. E foi através desse vinho que conhece Dirk Niepoort, que o apoia em suas empreitadas vinícolas.
Em 2009, João Afonso adquire um antigo vinhedo de 4 hectares, com mais de 100 anos, em Portalegre, no Alentejo. As vinhas ficam localizadas a 600m de altitude, na Serra de São Mamede e se constituem em duas parcelas, uma de uvas brancas e outra de uvas tintas, com diversas variedades tudo junto e misturado.
O produtor deixou as vinhas como estavam, sem arrancar nenhum pé. E adotou uma viticultura livre de produtos químicos, estando em busca de uma certificação biodinâmica. Batizou o novo empreendimento com o simpático nome de Cabeças do Reguengo.
É desse vinhedo complicado que provém a linha chamada Marcas dos Astros, com vinhos sideralmente rotulados de Luar das Cabeças do Reguengo, Solstício e Equinócio.
O Equinócio 2011 é um pandemônio de 14 castas:
algumas delas até são conhecidas por quem está por dentro das uvas portuguesas, como a Roupeiro, a Fernão Pires e a Malvasia Fina;
a Rabo de Ovelha é figura carimbada em qualquer relação dos nomes mais esquisitos de castas lusitanas;
a Arinto é a mais conhecida delas, mas não quando vem com complementos como Arinto Galego ou Arinto Cachudo;
há outras que podem ser garimpadas no livro de castas de Jancis Robinson, como a Tamarez, a Chasselas e a Moscatel Galego;
há três que necessitam de uma decodificação para serem identificadas: a Formosa é sinônimo da Diagalves; a Vale Grosso significa Listán de Huelva, e a Uva Rei é outro nome para a Damaschino, mas vamos combinar que isso ajuda muito pouco;
e a lista se completa com duas variedades que ninguém - nem mesmo o Google! - sabe que existem: a Salsaparrilha e a Excelsior.
O produtor explica seu ponto de vista: "Algumas destas castas têm dupla aptidão - vinho e mesa - e são desprezadas para a produção de vinho. Pessoalmente penso que numa vinha velha, com as produções que esta tem, todas as uvas depois de maduras dão um contributo único e indispensável para o lote de vinho final. Não há vinho feito de castas, há vinho feito de uva branca de uma vinha velha. É este o
nosso Equinócio."
O vinho fermentou com o mínimo possível de intervenção em barricas muito velhas e nelas permaneceu por um ano com as borras finas.
Uma experiência inesquecível |
Em outubro passado, quando estive em Lisboa, fui jantar no charmoso e histórico Chafariz do Vinho, na rua da Mãe d'Água. O alemão que me atendia, sócio do local, sugeriu que iniciasse com um vinho branco alentejano servido em taça, o Equinócio 2011. Foi um caso de amor ao primeiro gole e fiquei vivamente entusiasmado com os aromas e sabores que o vinho concentrava em um copo. Descontrolei-me e pedi para comprar uma garrafa ali mesmo, pagando o preço da emoção: 30 euros, enquanto o vinho no comércio lisboeta custa cerca de 20 euros.
A garrafa acompanhou-me na viagem de volta ao Brasil e ficou esses meses todos me encarando com olhar pidão, implorando para ser desarrolhada. Esta semana fiz a sua vontade...
E aqui eu faço um parênteses para perguntar aos leitores: "Sou só eu que tenho marcação contra as cápsulas de cera?" Por mais cuidado que se tenha, elas terminam fazendo uma grande lambança e há sempre aqueles pedacinhos marotos que teimam em saltar para dentro da taça. Com a cera do Equinócio, não foi diferente... Mas fora esse percalço, o resto foi só felicidade.
A cor do vinho é essa belezura acima. E o produtor que se cuide, pois com mais tempo de evolução a tonalidade pode se aproximar do amarelo Veuve Clicquot e ele receber a visita dos advogados da gigante francesa, reclamando de uso indevido da cor. Com Champagne, nunca se sabe...
No nariz, aparecem aromas de tudo o que você pensar e fica difícil identificá-los todos: tem muitas frutas - abacaxi, banana, cítricos - adoçadas com uma colherzinha de mel e perfumadas com um ramo de flores brancas. E as barricas onde o vinho estagiou devem mesmo ser muito velhas, pois não achei nenhuma nota que me remetesse à madeira.
Na boca, é tudo o que eu gosto em um vinho branco: seco, muita concentração, cremosidade, refrescância que rivaliza com pasta de dentes, durabilidade de pilha Duracell, sabores exóticos e inidentificáveis e - por mais incrível que possa parecer com essa cornucópia de castas - elegância!
Oscar Daudt
24/01/2014 |