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    Apelidadas pelos antigos de Ilhas Afortunadas, as Canárias sempre foram um ponto de referência na geografia do hemisfério norte e, por muitos séculos, associadas de forma abrangente aos mitos do Atlântico.

    De Hesíodo, o poeta grego que acreditava que estas ilhas acomodavam a região abençoada, onde heróis eram recebidos pelos deuses, ao monge-navegador irlandês Brandon de Ardfert, que encontrou ali o Jardim do Éden, até o grande escritor luso José Saramago, que em Lanzarote encontrou seu refúgio, todos idealizaram essas terras ensolaradas e vulcânicas, ventiladas pela brisa dos alísios, como o Paraíso.

    A história das ilhas é um tanto misteriosa. Os romanos desembarcaram em Fuerteventura e encontraram um local habitado apenas por cães selvagens, e logo a nomearam Insula Canaria, ou "ilha dos cães", que terminou designando também as ilhas vizinhas. Ao longo do tempo, as Canárias receberam visitantes ocasionais de todos os lugares, até que, em 1402, o francês Jean de Béthencourt, que era capitão de um navio espanhol, chegou à ilha de Gran Canaria, reclamou o arquipélago para a Espanha e o batizou com o atual nome.

    Aquelas ilhas de areias negras e antigos vulcões logo se demonstraram muito férteis. As primeiras videiras que se aclimataram nas ilhas foram trazidas de Creta, no final do século XV e, em 1524, por ordem do navegador Hernán Cortez, de lá saíram as primeiras cepas européias plantadas no Novo Mundo. Ao mesmo tempo, toneleiros de Jerez ensinaram seu ofício aos insulares, assentando as bases de uma nova indústria que alcançaria notável esplendor.

    As malvasías canárias gozaram de merecido prestígio por vários séculos. Shakespeare chama de Sir John Canarias seu Falstaff, por sua predileção pelos vinhos das ilhas. O corsário Francis Drake organizou uma invasão às ilhas com o objetivo de roubar milhares de garrafas de vinho. Quando atacaram os barcos espanhóis, os piratas repartiram rapidamente o butim alcoólico, atirando ao mar outras riquezas, como o chocolate trazido da América. O Porto de Santa Cruz se converteu no principal exportador de vinhos canários e, por este êxito comercial, serviu como porta de entrada para as idéias liberais do Iluminismo francês. O vinho, que facilita e alegra as relações humanas, desempenhou surpreendente e decisivo papel cultural: camuflados dentro de tonéis vazios chegaram às ilhas os primeiros exemplares da Encyclopédie. Voltaire era um grande apaixonado pelos vinhos canários e, em correspondência privada, deixou algumas notas de agradecimento aos amigos que o presentearam com garrafas de malvasía.

    Hoje em dia, as malvasías ainda estão entre os vinhos preferidos dos consumidores locais, mas não é só delas que vivem os vinhos canários atuais. Por nunca terem sido afetados pela filoxera, as afortunadas ilhas abrigam variedades de uvas há muito extintas no continente, como as brancas Gual, Sabro e Bujariego e as tintas Negramoll, Tintilla e Listán Negro, e delas derivam brancos e tintos, secos e doces, de enorme qualidade.

    Das sete ilhas que formam o arquipélago, apenas as ilhas de Gomera e Fuerteventura não produzem vinhos. Tenerife é a maior produtora e abarca cinco denominações de origem: Abona, Tacoronte-Acentejo, Valle de Güímar, Valle de la Orotava e Ycoden-Daute-Isora. Gran Canaria vem logo em seguida, com denominação do mesmo nome e uma recentemente autorizada D.O. Monte Lentiscal, onde são produzidos lendários tintos. As ilhas de La Palma, Lanzarote e El Hierro, por terem áreas menores de vinhedos, não são tão representativas como as duas primeiras.

    Poucos vinhedos no mundo podem se vangloriar de receber uma maior dedicação artesanal que os vinhedos das Ilhas Canárias. Lá, o cultivo da videira poderia ser considerado uma obra de arte, uma vez que os viticultores se deparam com condições climáticas totalmente desfavoráveis: pluviosidade quase inexistente; solos pobres que devem ser cobertos cuidadosamente com capas de lava vulcânica triturada, para reter a umidade do subsolo; ventos fortes e extremamente quentes, que obrigam a realizar a plantação da videira em buracos de um metro de profundidade, protegidos por muros de pedra...a mecanização do vinhedo ali é um sonho impossível, e o produtor deve realizar todo o processo manualmente.

    Da mesma forma que em algumas outras regiões vinícolas espanholas, só se consegue provar o bom vinho canário in situ, o que para nós, que estamos do outro lado do oceano, é um tanto desalentador. Mas, ao afortunado que pisar naquelas terras surgidas do fogo e do mistério, um verdadeiro paraíso de vinhos o estará esperando.
     
    Vinhos recomendados

    Viñátigo Tintilla Roble 2003
    D.O.Ycoden-Daute-Isora
    Cor rubi intenso. Degustado depois de 40 minutos no decanter, o vinho mostrou aromas de cerejas, rosas, terrosos, musgo e notas de baunilha e defumados. Boca potente, boa acidez, com alguma mineralidade e um toque salino, que creio ser típico da casta.
    Nota: 89
    Onde: Viñátigo - Tel.: (+34) 922 828 768

    Humboldt Blanco Dulce 1997
    D.O. Tacoronte-Acentejo
    Cor âmbar. Aroma balsâmico, frutos secos, especiado. Paladar confitado, cremoso, potente, boa acidez. Um dos grandes vinhos doces de Espanha.
    Nota: 94
    Onde: Bodegas Insulares Tenerife - Tel: (+34) 922 570 043

    Viña Mocanal 2001
    D.O. Monte Lentiscal
    Cor cereja escuro. Nariz especiado, defumado, mineral, notas de frutas frescas. Excelente equilíbrio entre álcool, taninos e acidez. Notas de cacau, cravo, café e torrefação. Para os que gostam de raridades, este vinho é produzido a partir de castas locais(Listán Negro e Negramoll), e considerado o melhor tinto da ilha, lá conhecido como "tinto del monte".
    Nota: 91
    Onde: Herederos de Carmen Rodríguez Millán - Tel: (+34) 928 350 937

    El Grifo Canari 1997
    D.O. Lanzarote
    Cor âmbar brilhante. Aromas de frutos secos, mel, casca de laranja, mineral. Paladar elegante, muito persistente, harmonia entre doçura e acidez. Este vinho doce de Malvasía é elaborado pelo método solera, numa versão moderna dos Canary Sack do século XVII.
    Nota: 90
    Onde: El Grifo - Tel: (+34) 928 524 036
    Comentários
    Juan José Verdesio
    ABS Brasília
    Brasília
    DF
    03/04/2009 Parabens pela materia de vinhos tão desconhecidos entre nós. Nunca visitei as ilhas, mas sou bisneto de canarios e sempre tive curiosidade por conhecer estes vinhos.

    No Uruguay, um sinônimo de pessoa muito trabalhadora e pouco cultivada é de "canário". Isto devido a que a principal migração inicial do Uruguai foi de canarios e eram agricultores fortes, com muita força bruta e muito laboriosos, mas muito ignorantes. Realmente fazer qualquer agricultura nas Ilhas Canárias é uma atividade titânica.

    Tive a sorte de dividir um ap com um amigo e colega de estudos uns tempos na França. Ele me apresentou alguns vinhos da família e de outros produtores. São vinhos bem diferentes de todos os outros da Espanha.

    Eu arriscaria um palpite sobre a "salinidade" de certos vinhos de lá. Não será que acontece o mesmo processo do jerez Manzanila de San Lucar de Barrameda que adquire estes aromas pelo amadurecimento em tonéis adquirido pela maresia que vem do litoral?
    Cesar Galvão
    Rio de Janeiro
    RJ
    03/04/2009 Caro Juan,

    Certamente a influência marítima imprime uma salinidade aos vinhos canários, justamente como os manzanillas de Sanlúcar que vc usou em perfeita comparação. Pude observar essa característica em vários brancos secos de ilhas e produtores diferentes.

    O detalhe curioso reside nos tintos... não notei esse toque salino nos tintos em geral, mas nos 3 exemplares da uva Tintilla que degustei (os outros foram os rótulos Monje e Tágara)essa nota era presente, por isso arrisquei dizer em minha coluna que essa pode ser uma característica da casta.

    Forte abraço,
    Cesar
    Rogerio Goulart
    Rio de Janeiro
    RJ
    10/04/2009 Cesare,

    Estou aguardando informações do Sr. Vilmar Bettú referentes ao encontro de produtores de Malvasia De Candia que acontecerá nas Canárias que, se não me engano, acontecerá em maio e para o qual ele e o Sr. Jorge Ducati foram convidados.

    O encontro é promovido por uma associação de produtores de Malvasia de Candia. Esse convite surgiu através de um trabalho publicado na Europa sobre a uva Sangiovese de autoria do Sr. Jorge Ducati. As informações estão incompletas, mas assim que tiver mais detalhes passo pra voce.

    Seria interessante que o Sr. Jorge Ducati a quem tive o prazer de conhecer na cantina do Bettú, postasse aqui as informações referentes a esse assunto. Inclusive ele aparece fazendo um comentário no post sobre Est, Est, Est.

    Grande abraço!
    Errico Ernesto Rosa
    Comprador independente
    Rio de Janeiro
    RJ
    10/07/2009 Há que se acrescentar que foi uma uva canária que originou a produção de vinhos na Califórnia, no Chile e na Argentina. A referida Listán Negro nessas regiões é chamada de Misión, País e Criolla.

    Um abraço
    Errico
    EnoEventos - Oscar Daudt - (21)9636-8643 - [email protected]