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 Publicado em 1943, O Pequeno Príncipe (Le Petit Prince), de Antoine de Saint-Exupéry, é muito mais do que um livro infantil. O teor poético e filosófico da obra conquistou adeptos de todas as idades. Com cerca de 500 edições este é o livro francês mais vendido no mundo (mais de 80 milhões de exemplares) e um dos mais traduzidos da história (180 línguas). O texto integral pode ser encontrado facilmente na internet.
O Pequeno Príncipe já mereceu adaptações em quadrinhos, para o cinema, TV, teatro, ópera, rádio, um museu (no Japão), produtos licenciados e até um asteróide de verdade o principelho já batizou. O mais importante, contudo, são as ações sociais que o livro inspirou, que incluem hospital, fundação, faculdade e um instituto de pesquisas. A obra em si é sucinta (pouco mais de 90 páginas), mas contém infinitas entrelinhas, que já mereceram análises sob a ótica de diversas áreas do conhecimento humano. Porque então não enxergar estas páginas através de uma taça de vinho?
A história começa com um aviador contando do seu primeiro desenho quando criança: uma jibóia digerindo um elefante. Ao mostrar o desenho para os adultos ele foi incompreendido, todos achavam que o desenho retratava um chapéu... Pois estas mesmas pessoas provavelmente veriam no vinho apenas uma bebida alcoólica ou um mero suco de uva fermentado.
Já adulto o tal aviador é obrigado a fazer um pouso de emergência no Saara. Sozinho em meio ao deserto conhece o principinho, que morava em um asteróide e veio visitar a Terra. O pequeno pede ao aviador que desenhe um cordeiro e só fica satisfeito quando, após muitos cordeiros rabiscados, o desenho mostra apenas uma caixa. A mensagem por traz desta passagem é "abstração", que é a essência da arte e também da degustação de vinhos, sem a qual jamais poderíamos reconhecer aromas de frutas ou flores que nunca estiveram dentro da garrafa. Assim como a caixa guarda um cordeiro imaginário, que será como cada um quiser, o vinho é apenas um líquido dentro de uma garrafa. A emoção e a cultura está em cada um de nós. Um mesmo vinho evocará poesia aos poetas, componentes químicos aos cientistas ou recordação de momentos vividos aos amantes.
Conta o livro que o asteróide de onde vinha o príncipe foi descoberto em 1909 por um astrônomo turco, "que fez uma demonstração da sua descoberta num Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém lhe dera crédito, por causa das roupas que usava". O astrônomo repetiu a demonstração em 1920, numa elegante casaca e então todos se convenceram. Todo produto é vendido também por sua embalagem (às vezes o produto somos nós mesmos), e o vinho não fica fora deste contexto. Na mesma passagem, o principinho diz que "as pessoas grandes adoram os números". Certo ele está, pois muitos apreciam seus vinhos por notas, preço, safra, teor alcoólico, meses em barricas...
O pequeno narra ao aviador sua saga por diversos planetas onde encontra personagens muito curiosos. Um deles é o "acendedor de lampiões", que segue regras dogmaticamente, acendendo e apagando lampiões como uma máquina, simplesmente porque "é o regulamento". Não há como não pensar nas mil regras que os "especialistas" impõem aos enófilos para garantir seus empregos de "donos da verdade", esquecendo que o que há para ensinar não são regras, mas como navegar na deliciosa complexidade do vinho.
 Ao mesmo tempo em que regras inquestionáveis fazem mal ao vinho, os rituais o valorizam. Como bem lembrou a raposa, uma das personagens. "É preciso ritos" diz ela. "Que é um rito?", pergunta o príncipe. "É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias". Os ritos tornam especial cada garrafa aberta e distinguem o vinho de outras bebidas.
Até mesmo o respeito ao terroir o livro nos ensina. A personagem do rei, ao dar mil ordens, mas apenas ordens que podem ser cumpridas, nos lembra que "é preciso exigir de cada um o que cada um pode dar". Assim, é preciso buscar em cada terroir e em cada vinho o que ele pode nos dar. Não adianta tentar produzir no Brasil um Cabernet chileno, nem tentar buscar complexidade em um Beaujolais.
A ligação entre a obra e o vinho já se materializou em ao menos um rótulo. O Pi Cít (Pequeno Príncipe, em dialeto piemontês) hoje é raridade, de produção pequena, esteve representado no Brasil pela World Wine até 2007. Tive sorte de conseguir uma garrafa:
Pi Cít 2000, Marchesi di Barolo, DOC Langhe. Cabernet Sauvignon (60%) e Nebbiolo, amadurecido por 8 meses em carvalho francês. Vermelho rubi muito escuro. Aroma intenso, amoras, cassis, menta, tostados, especiarias. Encorpado, taninos finos e resolvidos, boa acidez, 14,5% de álcool, longo e macio. Bom amálgama das duas cepas, com muita personalidade. Nota 90 pontos
As analogias dessa obra com o vinho são tantas que não cabem nesta página, e podem ir além, até a lenda de Dionísio. Assim que nasceu, Dionísio (filho de Zeus) foi exilado na Índia, onde cresceu educado pelas musas, deusas das ciências e das artes. Ao atingir a idade adulta, Dionísio retornou à Grécia, passando pelo Egito, onde teria aprendido vinicultura, e pela Arábia. Teria o deus do vinho encontrado o pricipinho em sua passagem pelo deserto do Saara?
Antoine de Saint-Exupéry e o vinho nos mandam mensagens semelhantes e universais: auto-conhecimento, partilhar, amar o próximo e simplesmente ser feliz. |
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