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 Antes de mais nada quero lembrar a todos da imperdível VERTICAL DE VEGA SICILIA, 5ª feira, dia 15/04, na Escola Mar de Vinho. Detalhes em www.mardevinho.com.br/agenda/vega-sicilia.
 Agora vamos falar de "pé":
Para fazer bons vinhos os enólogos usam a cabeça, o coração e às vezes até o pé... Leiam este trecho do meu livro Os Sabores do Douro e do Minho e vejam como. Esse livro acaba de ser eleito o melhor livro de 2009 na categoria "livro sobre vinho europeu", pelo GOURMAND WORLD COOKBOOK AWARDS, de Paris. Boa leitura!
Fazer vinho em lagares é uma prática que remonta a Roma antiga. Alguns lagares ainda em uso em Portugal são antiguidades. Um lagar é um tanque retangular baixo, de tamanho variável, quase sempre de pedra (granito) onde homens pisam os cachos de uva e onde o mosto (suco) da uva fermenta. Hoje há lagares de cimento, inox, ou mesmo lagares antigos de pedra, revestidos de aço inox, com controle de temperatura. O mais comum é o de cerca de 80cm de altura e capacidade de 7.500 litros
O lagar é tradicionalmente usado na elaboração de vinhos do Porto, mas não de qualquer vinho do Porto, só uma minoria. A pisa é trabalhosa e dispendiosa, pois necessita de muita mão de obra, assim, é reservada apenas aos melhores vinhos do Porto, como os Vintage, e conforme a casa, outras categorias. Os vinhos do Porto "correntes" (Rubys e Tawnys), que representam 88% de todo vinho do Porto produzido, não são pisados em lagares e sim elaborados em prensas, como qualquer vinho de mesa. Hoje alguns vinhos de mesa do Douro e de outras regiões, geralmente os mais "top", são também elaborados em lagares. Mas porque usar uma prática tão antiga?
Porque usar lagares? Para a elaboração de certos tipos de vinho (não apenas Porto) a pisa das uvas em lagares traz vantagens fundamentais. Antes de explicá-las lembremos que:
1-A cor e outras substâncias que dão sabor e corpo aos vinhos vem das cascas das uvas, e são extraídas pela maceração, que acontece antes e durante a fermentação. Este ato de espremer as uvas, quanto mais intenso e demorado, mais cores e sabores trará ao vinho.
2-Os vinhos do Porto têm maceração muito curta, já são que fortificados com aguardente vínica. A aguardente é acrescentada no meio da fermentação, interrompendo a mesma e interrompendo a extração de cor e outras substâncias.
3-A aguardente acrescentada é incolor e representará cerca de 23% do volume final do Porto.
Como então obter um vinho tão escuro e encorpado como um Porto Vintage, tendo pouco tempo para extrair cor e ainda por cima diluindo-o em um liquido incolor? Lembre que o Porto Vintage é um dos vinhos mais escuros do mundo, quase uma tinta preta, e só tem uns 2 ou 3 dias de maceração, enquanto outros vinhos ao redor do mundo têm 10, 20, até 30 dias de maceração .
A solução é a pisa em lagares. O calcanhar humano ao pressionar as uvas contra o chão áspero de granito, proporciona um elevadíssimo nível de extração, não apenas de cor, mas também de outros componentes e ácidos, tão necessários ao corpo, sabor e longevidade do vinho. Uma prensa, se usada para tentar extrair tanto do mosto, poderia extrair também gostos amargos, herbáceos, ou outros paladares indesejados ao vinho. Para conseguir isto não há nada melhor que o lagar tradicional!
O passo a passo da pisa em lagares
1º A desengaçadeira Um cacho de uvas é formado pelos bagos (as uvas) e pelo engaço, espécie de ramificação ou finos caules, que formam o cacho. O engaço traz adstringência, amargor ao vinho. Antigamente os cachos eram pisados inteiros, o que tornava o trabalho de pisar mais demorado e cansativo, além de produzir vinhos mais adstringentes e rústicos, que precisavam de mais tempo de envelhecimento para tornarem-se agradáveis.
Hoje muitos produtores retiram totalmente ou parcialmente os engaços. Antes de ser colocados nos lagares, os cachos de uva podem passar por uma "desengaçadeira". Este aparelho normalmente tem forma de cilindro giratório por onde os cachos passam e deixam os bagos presos nos furos na superfície metálica, uma espécie de arame. Assim o lagar já recebe uma massa mais fluida e a pisa extrai melhor as substâncias que nos interessam: cor, aromas, taninos etc, que estão nas cascas das uvas. O mais comum é um desengace parcial, já que um pouco da adstringência conferida pelos engaços é bem vinda.
2º O "corte" A primeira fase da pisa é chamada de "corte". Esta é a parte mais conhecida, quando um grupo de homens formados em linha, com os braços nos ombros uns dos outros, esmagam as uvas. É o cartão postal da pisa.
A massa de uvas e engaços no lagar é densa e se divide em parte liquida ao fundo e parte sólida que bóia e precisa ser "quebrada" e misturada, no que chamam de "corte". A linha de homens é feita para que o corte seja uniforme em todo o lagar, sem deixar de pisar nenhum centímetro quadrado do perímetro.
Já pisei uvas em Portugal mais de uma vez e posso confirmar, este é um trabalho duro, geralmente feito à noite. Mais duro que este só o trabalho de escrever livros... A massa a pisar é pesada e arranha os pés e as pernas. Normalmente pisa-se por 2 horas seguidas cada lagar (depois de ter colhido uvas o dia todo).
3º A "liberdade" Esta fase, chamada de "liberdade" acontece quando o grupo se separa e cada um pisa livremente, muitas vezes com música. Esta etapa é feita com pisas de 3 horas e intervalos de 2 horas. Este tempo é para que as leveduras atuem no mosto em fermentação. Os homens não necessariamente descansam enquanto isso, pois podem pisar outro lagar.
4º A Fermentação Depois de 24 a 36 horas do corte começa a fermentação alcoólica - quando as leveduras transformam o açúcar natural das uvas em álcool liberando gás carbônico e calor.
Forma-se então, naturalmente, uma camada de gás carbônico, uma espécie de manta, que cobre a massa em fermentação, já que o gás carbônico é mais pesado que o ar. Esta camada de gás protege o mosto contra oxidação. O calor é liberado para o ambiente, mas dentro do lagar a temperatura fica fresca, entre 25°C e 30°C, ideal para fermentação de vinhos tintos.
5º Trabalhar o lagar A fase seguinte segue enquanto o mosto fermenta e se transforma em vinho. É necessário pisar para que seja quebrada a manta que se forma na superfície do lagar, misturando a parte sólida com a parte líquida para maior extração de cores, aromas e sabores. Esta etapa é dividida em 3 horas de pisa com 4 horas de intervalo para que as leveduras trabalhem. Pode ser cumprida com a pisa a pé ou com artefatos como pás de madeira.
Nesta fase começa-se a medir periodicamente o teor alcoólico do mosto, para saber o momento da ideal de interromper a fermentação com a adição da aguardente.
A Fortificação Quando o grau alcoólico desejado é alcançado deixa-se o lagar descansar por algumas horas para que a manta de sólidos bóie. Depois é hora de abrir a torneira na base do lagar, transferindo o mosto para um recipiente temporário (um tonel) onde será misturado à aguardente vínica 77%, na proporção de 110 litros de aguardente para cada 440 litros de mosto. Esta "fortificação" do vinho é chamada de "beneficiamento".
A aguardente pára a fermentação, pois mata as leveduras que não agüentam os 19-20% de grau alcoólico alcançado. O vinho resultante terá bastante açúcar, natural da uva (açúcar que não chegou a ser transformado em álcool, já que a fermentação foi interrompida), resultando num vinho naturalmente doce.
A pisa robótica As imagens de muros de pedra centenários e pisa em lagares podem enganar quem pensa que o Douro parou no tempo. Muitas adegas são computadorizadas, com cada cuba controlada, às vezes monitoradas via Internet à distância, por seu enólogo, que pode estar em outro país e de lá operar todo o maquinário.
Por séculos os pés dos trabalhadores representaram um papel importante no Douro. As últimas décadas, no entanto, viram este panorama mudar. Por um lado a mão de obra ficou mais rara e cara. Por outro lado o mundo do vinho se modernizou e exerceu uma pressão natural sobre os produtores do Douro, para que se tornassem mais competitivos, diminuído custos e elevando o padrão de qualidade dos vinhos.
Algumas casas abandonaram os lagares e começaram a fazer todos os seus vinhos, mesmo os Vintages, por métodos usuais, com prensas. A experiência não foi bem sucedida e muitos voltaram à tradição, só que agora buscando inovações, como o controle de temperatura dentro dos lagares ou máquinas que pisassem as uvas.
Hoje, depois de muitos anos de minucioso aperfeiçoamento, a pisa mecânica ou pisa robótica é uma realidade. Esta é uma das inovações mais revolucionárias ocorridas nas ultimas décadas no mundo do vinho, e que ao mesmo tempo soa mirabolante, quase bizarra. Uma máquina para imitar o pé humano? Pois para muitos produtores este é o nirvana!
 Este equipamento futurista custa caro, só as casas maiores e mais ricas podem ter um. Eu visitei vários produtores com pisa robótica e não vi duas iguais. Cada um criou e aperfeiçoou seu próprio método, sempre baseados nos mesmos conceitos, simular a pisa a pé. Usando pressão hidráulica, com pés mecânicos de metal às vezes revestidos de silicone (para torná-los macios como o pé humano) estas "pás" exercem a mesma pressão ao seu equivalente de carne e osso. A pisa robótica pode ser programada em sua hora de inicio, duração, temperatura, intensidade, percurso dentro do lagar etc. Vi estes "robôs" em algumas das melhores casas, como a Quinta do Noval e a Quinta do Crasto, entre outras, mas o que mais me impressionou foi uma degustação que participei na Quinta do Bomfim, da família Symington.
Pincipal produtor de vinhos do Porto de categorias especiais como os Vintages (detendo 1/3 do mercado mundial), controlando marcas como Dow's, Graham's e Warre's; a Symington possui na Quinta do Bomfim sete lagares totalmente em inox, com pisa robótica computadorizada, com controle de temperatura (quente ou frio). É impressionante!
Uma interessantíssima prova me foi oferecida: três amostras de Porto Vintage, a primeira de uvas pisadas a pé (humano) em lagar tradicional, a segunda pisada no lagar robótico e a terceira macerada em cubas de inox sob a ação de "plungers", espécie de hélices mecânicas computadorizadas que fazem um trabalho semelhante ao da pisa robótica (uma espécie de estágio intermediário entre a elaboração de um vinho comum e uma pisa mecânica).
O resultado encontrado foi de certa forma lógico, o vinho pisado a pé era mais herbáceo, carregado e de taninos mais rústicos, o do "plunger" mais floral e leve e o "robótico" uma espécie de meio-termo, mais macio que o tradicional na boca. A arte do enólogo aqui é decidir que uvas processar com que técnica e depois como misturar o resultado para obter o vinho desejado. |
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