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 Sempre digo em minhas palestras que o vinho é apenas um líquido em uma garrafa. A emoção está em quem o bebe. O vinho funciona como um espelho onde cada um verá a si mesmo. Quem gosta de Jazz, por exemplo, "ouvirá" em seu vinho predileto muitos Miles, Monks, Ellas e Parkers (Charlie e não Robert). A relação será estabelecida na emoção, que está em cada Jazzófilo e em cada discípulo de Baco.
Eu diria que o Jazz se diferencia dos demais estilos musicais por quatro características principais. Primeiro por sua grande complexidade harmônica, em geral maior até do que a da música clássica. Segundo pelas dissonâncias, que enriquecem tremendamente as melodias, causando tensões e momentos dramáticos. Terceiro pelo improviso, como nas jam sessions, que tornam cada show único. Finalmente por estes improvisos se basearem normalmente no que chamamos de standards, canções que são tão famosas e há tanto tempo, que qualquer músico conhece. Assim, instrumentistas que nunca se viram podem improvisar juntos sobre o mesmo tema, como Round Midnight ou Dindi.
O Vinho O vinho tem tudo isso. É de longe a bebida que pode alcançar a maior complexidade olfato-gustativa, por sua variedade de castas e terroirs, e capacidade de envelhecimento em garrafa. O vinho pode ter dissonâncias, angulosidades, que realçam seu sabor, como um toque a mais de taninos ou de acidez. O improviso também está presente na enologia. A cada dia esbarro com novos blends inusitados - em minha última visita ao Chile provei um corte muito criativo, um branco de Carménère com Sauvignon Blanc, que "soou" muito bem, em tom maior! Finalmente, no universo do vinho os standards poderiam ter sua metáfora nas uvas internacionais, os enólogos podem trabalhar como músicos fazendo suas criações nos mais variados terroirs com base em castas que todos conhecem - já provei Cabernets de um sem número de regiões e países, de uma infinidade de estilos. Da mesma forma já ouvimos infinitas variações sobre o tema de A Night in Tunisia.
O jazz seria então a melhor companhia musical para o vinho? Se você gosta de Jazz e de vinho, sim. Como disse no início deste texto, a emoção está em quem ouve e degusta. Jazz e vinho oferecem uma fonte ilimitada de estilos, nuanças, sonoridades e sabores, possibilitando um terreno fértil para muitas combinações.
Eu por exemplo, poderia propor "harmonizar" A Love Supreme, de John Coltrane, com um Almirez 2007 (Peninsula, R$ 172), da bodega Teso La Monja, donos da já lendária Numanthia Thermes. Coltrane tem gosto de vanguarda, complexo e cerebral, com força passional. Este tinto de Toro tem o mesmo tom: vanguarda espanhola, profundo na cor e sabores, complexo (muita fruta, especiarias picantes, florais de rosas, chocolate, fumé, toque mineral de grafite), taninos potentes e nervosos como as sofisticadas dissonâncias de Coltrane, e como tudo que é bom precisa de tempo, dê a este caldo ao menos mais 2 anos em garrafa. Um monstro do Jazz e um monstro de vinho. Nota: 91 pontos.
O contraponto à energia criativa de Coltrane pode estar na delicadeza quase preguiçosa de Billie Hollyday. A intérprete de Lover Man é pura emoção, transbordando de um talento tão inexorável quanto as quatro forças da natureza. Um Borgonha como o Pommard Vieilles Vignes 2006, de Dominique Laurent (World Wine, R$ 334), toca esta mesma melodia: clássico, direto, elegante. Este tinto com aromas de cerejas, minerais terrosos e funghi secchi, ainda está jovem e nervoso, refletindo a força branda dos Pommard e a boa safra. Como Lady Day, todo Borgonha é mais instinto e terroir do que elaboração. Nota: 90 pontos |
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