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 O antigo e prolífico casamento entre o cinema e a enogastronomia gerou muitos filhos. Alguns nasceram belos e saudáveis, como o clássico "A Festa de Babete" (Babette's Feast, Dinamarca, 1988) ou o hilário "Sideways - Entre umas e outras" (Sideways, EUA, 2004). Outros são gauche, ovelhas negras, como "O Silêncio dos Inocentes" (The Silence of the Lambs, EUA, 1991).
Esta história de crime e horror, estrelada por Jodie Foster e Anthony Hopkins, contém a harmonização mais insólita da história do cinema. Hopkins interpreta o Dr. Hannibal Lecter, um serial killer canibal. Nunca aparece de fato vinho no filme, mas há um momento em que Lecter diz: "A census taker once tried to test me. I ate his liver with some fava beans and a nice Chianti." (Um censor tentou uma vez me testar. Eu comi o fígado dele com favas e um bom Chianti). Ao dizer isso o canibal faz com a boca um som sibilante, como se estivesse sugando vinho. Esta é a cena mais inesquecível do filme e nos remete à densa simbologia do fígado.
Várias culturas em várias épocas atribuíram ao fígado significados filosóficos ou ditos populares, como "ficar verde de raiva", "de maus fígados" (genioso), "desopilar o fígado" (ficar de bom humor) ou "vou comer o seu fígado". Para Platão enquanto o coração guarda a coragem, o fígado seria a sede dos desejos, do amargor e da alegria. Para o pensador grego o fígado é uma espécie de espelho liso capaz de refletir a razão. Segundo Cervantes, Dom Quixote estava enamorado de Dulcinea "hasta los hígados" (até os fígados). Na medicina tradicional chinesa, a sede da alma está no fígado, que seria a usina de forças do organismo. Nessa mesma China antiga, era costume comer o fígado do inimigo derrotado em batalha para assim assimilar sua coragem.
Inspirado pela carga cultural do fígado e como estudioso dos vinhos me achei na obrigação de testar a harmonização proposta no filme. Como infelizmente não havia nenhum inimigo se oferecendo como doador do órgão, o sacrifício foi de um boi.
Antes de escolher os vinhos, conversei com dois renomados sommeliers. Para Manoel Beato, do Fasano, "o fígado é solução para os vinhos do Novo Mundo" e o ideal seria usar vinhos macios e alcoólicos. O bi-campeão brasileiro de sommeliers Guilherme Corrêa concorda com Beato e sugere, para o toque de amargor do fígado, um vinho "quente", o Chateau la Bastide Optime 2006 (Corbières, sul da França).
Optei por três vinhos: um Chianti, o Corbières e um Amarone. Poucos sabem, mas no romance que inspirou o filme (The Silence of the Lambs, de Thomas Harris, 1988) o canibal cita o grande vinho do Vêneto ao invés do Chianti.
Provei os vinhos antes do prato. Pèppoli Chianti Classico 2005, Antinori (Wine Brands). Um Chianti bem moderno e frutado, mostrando amoras e ameixas, baunilha, sottobosco, café, de médio-bom corpo, já pronto, com taninos macios e o toque nervoso da Sangiovese. Nota 89 pontos.
Chateau la Bastide l´Optime 2006, Corbières, Languedoc (Decanter). Aromas de especiarias, pimenta, frutas bem maduras, vegetal de musgo, paladar de médio-bom corpo, macio, quente e redondo. Nota 88 pontos.
Amarone 2005, Allegrini, Veneto-Itália (Grand Cru). Aromas típicos de resina, fruta doce, ameixa passas, madeira nova, torrefação, chocolate, café, paladar volumoso, quase doce, alcoólico, muito macio e longo, com taninos doces ainda bem presentes. Nota 91 pontos.
Ao se confrontar com o fígado (um bife acebolado), o Chianti sentiu o amargor da carne e mostrou um lado rústico, que não lhe caiu bem. O Amarone sofreu um efeito quase oposto, sobrepôs-se ao prato, embora tenha ficado muito bem. O enlace mais harmônico foi do vinho com a menor nota. O casal "l´Optime-fígado" superou minhas expectativas e foi perfeito! As partes cresceram unidas, anulando seus pontos fracos: a pouca acidez do vinho se apoiou no amargor hepático, que se tornou quase elegante.
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