"Connoisseur é um especialista que sabe tudo sobre alguma coisa e nada sobre qualquer outra coisa"
Ambrose Bierce
O humor é por vezes uma forma de expressão artística mais eficaz do que o drama. O riso encanta e o choro espanta. É a teoria do "aprender brincando". Um bom exemplo de crítica bem (ou mal) humorada na literatura é o The Devil´s Dictionary, livro do jornalista norte-americano Ambrose Bierce (citado acima), um clássico do sarcasmo.
No cinema, a ironia atingiu o vinho em cheio em outro clássico: Muralhas do Pavor (Tales of Terror, EUA, 1962), dirigido Roger Corman e estrelado por Vincent Price e Peter Lorre. Podemos classificar esse filme, baseado em contos do mestre Edgar Allan Poe, como "terrir", terror para rir. A história se passa no século XIX e Montresor (Lorre) é um bêbado que acaba de ser expulso de uma taverna por falta de dinheiro. Vagando pelas ruas, ele vê em um restaurante uma movimentação em torno de várias garrafas de vinho. Trata-se de nada menos do que uma apresentação de Fortunato Luchesi (Price), o maior connoisseur de vinhos do mundo! Montresor (com intenção de beber bons vinhos "di-grátis") desafia Luchesi para uma prova às cegas. Luchesi é a afetação em pessoa, um "poser" como acusa Montresor no filme, ou o que chamaríamos hoje de um "enochato".
Quem degusta com freqüência acaba desenvolvendo alguns tiques característicos. Estes maneirismos já fazem parte do rico folclore do nobre fermentado. De discreta a espalhafatosa, passando por cômica, quantas vezes esta coreografia peculiar não foi satirizada? Pois este filme é o ápice desta zombaria, Price e Lorre protagonizam a mais hilariante cena de cinema já feita sobre vinhos.
Admitamos que pilhérias como esta têm um fundo de verdade, pois se o procedimento de degustar um vinho for exagerado pode realmente beirar o ridículo. O bom apreciador o executa com naturalidade e sem pedantismo.
Luchesi, com gestos pra lá de exagerados e ruidosos, toma micro goles de um taste vin, bochecha, inala ar, faz caretas e sentencia: "Pinot Noir, Borgonha, Clos de Vougeot 1838, passável...". Todos aplaudem, "está correto!". Montresor pede que encham bem sua taça e a seca em um só gole acertando: "Borgonha, Volnay, 1832, das melhores parcelas do vinhedo"... O desafio continua com os dois nomeando com precisão vinhos como "Chateau Margaux 1837", que Luchesi diz ser "um pouco pesado para um Margaux", e "Château Petit Vilage 1828" com o qual Montresor se deleita, antes de arrotar... Luchesi acusa Montresor de ser "pouco ortodoxo" em seus métodos, já que o correto seria seguir o ritual de mastigar, bochechar e aspirar, ao que Montresor replica: "Você faz do seu jeito e eu faço do meu".
Jeitos, estilos e tiques não faltam aos afilhados de Baco. Cito aqui um trecho de meu livro Vinho & Algo Mais (Editora Record, 2004): "A dança começa por girar o vinho na taça, um gesto que se torna tão natural que já me surpreendi muitas vezes fazendo redemoinhos em copos de água. Existem os giradores rápidos, lentos, rítmicos ou abruptos. Há os destrógiros e os sinistrógiros. Há os que seguram a taça pela haste e os que usam sua base. Aos neófitos, sempre aconselho rodar a taça apoiada sobre uma mesa, evitando derramar bebida (não, em hipótese alguma gira-se a mesa...). Há os que usam não só a mão, mas todo o braço ou até todo o corpo, embora o mais simples seja usar apenas o pulso. Neste caso, usar a munheca é muito útil e não interfere em sua opção sexual. Alguns cheiram com a narina esquerda e depois com a direita. Outros, com o líquido ainda na boca, fazem biquinho para sugar ar e sentir os "aromas de boca". Há os que são capazes de cuspir à distância".
Cada degustador tende a desenvolver sua própria expressão corporal. Eu confesso que cometo alguns destes gestos pouco elegantes. Como dito no filme, "cada um faz do seu jeito".
Nota do editor
Encontrei no YouTube a cena a que Marcelo se refere em seu texto. É muito boa! Imperdíveis as caretas e as afetações da degustação de Vincent Price.
Comentários
Narcisa Santos Apreciadora Rio de Janeiro RJ
11/10/2010
É uma boa crítica aos "almofadinhas".
Afinal quem entende mesmo de vinho é quem bebe regularmente, não quem prova e recomenda com fins comerciais.
Roberto Cheferrino Enófilo e publicitário Rio de Janeiro RJ
11/10/2010
Que maravilha...! Em nosso inconsciente humorístico somos também protagonistas dessa cena com muita certeza. Ótimo foco e parabéns ao enocinófilo Copello.
Helga Lima Carlos Médica Rio de Janeiro RJ
11/10/2010
A cena é impagável! Imperdível! Principalmente se tratando de dois ícones do cinema de terror e fazendo comédia! Muito bom! Parabéns pelo resgate da cena.
Abraço Helga.
Debora Takushi Amigas do Vinho - Presidente Seção SP São Paulo SP
11/10/2010
Eu lembro que você comentou este filme muito bem na Grande Degustação de Vinhos Portugueses em São Paulo e adorei poder participar de sua palestra.
Estar também aqui no EnoEventos, é uma maravilha!
Maria de Fátima da S. Duarte Enófila Rio de Janeiro RJ
11/10/2010
Maravilhoso e imperdível, parabéns para vcs de nos dar esse presente raro.
André Paranhos Feijoadólogo Rio de Janeiro RJ
14/10/2010
huahuahuahuahua, uma dilicia!!!
Graaaaaaaaande Marcelo! Abaixo os enochatos! Viva a simplicidade!
Marcelo Copello Colunista Rio de Janeiro RJ
15/10/2010
Narcisa, obrigado, e não faltam "almofadinhas" no mundo do vinho.
Bob, obrigado, também faço as minhas caretas ao degustar, mas com menos pose, rs
Helga, obrigado, para mim esta cena é a melhor de todos os tempos do "eno-cinema".
Debora, sim, usei este filme em naquele dia em São Paulo, sempre faz sucesso. Obrigado!
Oi Fátima, obrigado cara aluna!
André, esta crítica tem endereço certo, mas a carapuça serve em muita gente!