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"Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira"
Manoel de Barros


A transcrição do universo das palavras para o das imagens é sempre difícil. Filmes inspirados em livros raramente estão à altura da obra original. Mais ingrata ainda é a tarefa de filmar não prosa, mas poesia, e de um autor que não dá entrevistas e cujo título de um de seus principais livros é "Livro sobre Nada"... Vencendo essas dificuldades com louvor, Pedro Cezar nos brindou com um filme imperdível: "Só dez por cento é mentira" (Brasil, 2009), sobre a vida e a obra de Manoel de Barros.

O primoroso filme me lembrou uma analogia que faço desde meus primeiros escritos: "Degustar é escrever poesia". Degustar é sentir o vinho e interpretá-lo. Para isso é preciso educar as emoções, aprendendo a traduzi-las e descrevê-las. Se as sensações são subjetivas, a percepção deve ser objetiva. E o que é colocar emoções em palavras? Poesia. Degustar, portanto, é escrever poesia.

Não por acaso o vinho já inspirou grandes poetas. Charles Baudelaire, em seu "Um ensaio sobre vinho", dizia ouvir o líquido falando e escreveu em primeira pessoa, como o próprio vinho:

"Homem, meu amado, de minha prisão de vidro preso com cortiça eu tenho vontade de cantar para você... experimentando enorme alegria ao descer por sua garganta. O corpo de um homem honesto é um lugar de repouso que me agrada muito mais que esta melancólica adega".

Pablo Neruda e Mário Quintana provaram do mesmo vinho, o vinho da amizade e do companheirismo. Na famosa quadra de Quintana, o poeta das coisas simples, o vinho não fala e o amigo é igualmente calado:

"Por mais raro que seja, ou mais antigo
Só um vinho é deveras excelente
Aquele que tu bebes calmamente
Com o teu mais velho e silencioso amigo".


Neruda, o poeta do povo e do amor, era também politizado. Membro do Partido Comunista do Chile e eleito senador, protestava contra a repressão do presidente González Videla, insuflando seus companheiros com versos como:

"nós cantaremos com o vinho áspero
da terra: golpearemos as taças do outono,
e a guitarra ou o silêncio irão trazendo
linhas de amor, linguagem de rios que não existem".


Como em todo regime de repressão, as artes exprimem rebeldia. O Islamismo viu florescer, a partir do século VIII, uma escola de poesia romântica amotinada embebida em vinho. O maior expoente deste movimento foi o persa do século XI, Omar Kháyyám, cuja obra "Rubáiyát" é uma ode entusiasmada ao nobre fermentado e ao amor, como nos versos:

"Bebe vinho! Só ele te dará a mocidade, ele é a vida eterna! Divina estação das rosas, do vinho e dos bons amigos! Sê feliz um instante, o instante fugitivo que é a tua vida...".

Mas e o poeta que inspira este texto, Manoel de Barros (MB), o que disse sobre o vinho? Até onde sei, nada... O que me faz indagar, como seria o vinho na visão deste bardo?

Sigamos seus versos, como quem segue pistas. Segundo MB "poeta não descreve, inventa". Teríamos então um vinho abstrato? Ou seria um "desvinho", ou um vinho "desútil", que não bebo, mas o vinho é que me degusta e me descreve? Ele disse: "O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo". Este "transvinho", talvez fosse tão leve que flutuaria na taça, e não teria cor de vinho, nada de rubi ou dourado, teria que ser cor de bocejo ou de borboleta no escuro.

Seus versos "é no ínfimo que eu vejo a exuberância", e "não preciso do fim para chegar", sugerem que ele usaria no lugar de uma taça, um conta-gotas, e que a garrafa conteria apenas 1 mililitro, que jamais se esgotaria. No universo manuelino, um vinho profundo poderia ser um "vinho reticências" ou "et cetera", ou, se fosse longo no sabor, um "vinho et cetera e tal". No caso de ser complexo, seria, quem sabe, um "vinho assim por diante". Poeta que é poeta não degusta vinho, poeta sonha vinho, conversa vinho. Depois de beber acho que ele diria, "o vinho entrou em mim, vinhei". Vinho é poesia, embora a poesia não esteja nele e sim em cada um de nós, que o degustamos. Um brinde.

(da coluna na revista Gosto, número 14)
 
Comentários
Monica Elisabeth Kich
Enófila e tradutora
Viçosa
MG
23/10/2010 Maravilhoso artigo! Uma quase-crônica!

O vinho serve de inspiração, isso é uma certeza! Porém o lado medicinal, que cita antioxidantes, revesratrol e afins é um coadjuvante. O lado inspirador e relaxante do vinho é o que desempenha o papel mais importante, congregando amigos, estimulando confidências e descontração.

Nos dias de hoje, que tal trocarmos uma hora de terapia, por um bom vinho entre amigos?
Cristina Saliby
Algodoim - produtos de algodão
Rio de Janeiro
RJ
23/10/2010 Lindo texto. Quanta poesia também do Marcelo. Degustamos seu texto.

Um abraço,
Cristina
Marcelo Copello
Colunista
Rio de Janeiro
RJ
24/10/2010 Monica, obrigado, o vinho faz bem a alma e corpo. Tem um provérbio russo que fala que o dinheiro que gastar em vinho é economizar no médico.

Cristina, obrigado, o vinho é a inspiração.

Abraços e até segunda!
Marcelo Copello.
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