
Quando eu era criança, o cachorro da minha família, que cresceu junto comigo, era o Boca Negra, um belo Pastor Alemão. Carinhoso e ciente de suas obrigações como protetor de todos nós, ele nunca saía de casa, muito embora os portões estivessem sempre abertos. A única exceção era quando ele via seu inimigo figadal, o odiado Rex, que morava na esquina. Nessas ocasiões ambos se entregavam a uma briga furiosa, sangrenta, que só terminava quando alguém trazia um providencial balde d'água para esfriar os ânimos dos dois lutadores.
Todas essas lembranças vieram à tona quando, há um ano, fui jantar no Bistrô Ouvidor e o sommelier Efraim Moraes falou-me do vinho homônimo ao meu cachorro, o Bocanegra Monastrell 2007. Minha emoção foi tão palpável que, à saída, o gentil Efraim presenteou-me com uma garrafa. Gostei tanto do presente que somente esta semana tive a coragem de abrí-lo.
A Monastrell é uma variedade originária de Valencia, Espanha e seu nome deriva de "monastério", sugerindo que seu uso tenha sido difundido pelos monges. É uma uva exigente, que requer altas temperaturas para amadurecer, assim como um bom suprimento de magnésio e potássio. Pouco resistente à seca, necessita de um fornecimento regular de água. E, além disso, ainda é suscetível a pragas e apresenta baixo rendimento. Tem tudo para ser um fracasso...
Apesar dessas dificuldades, é a quarta variedade tinta mais plantada na Espanha, perdendo apenas para a Tempranillo, a Bobal e a Garnacha. Na França, onde é conhecida como Mourvèdre, é uma variedade importante que apresentou, nos últimos anos, um crescimento vertiginoso em termos de área plantada: enquanto há 50 anos havia cerca de 500ha plantados, atualmente a área dedicada a essa casta é de mais de 9.000ha. Suas principais regiões são o sul do Rhône, o Languedoc-Roussillon e a Provence.
A Monastrell é normalmente utilizada em cortes, mas o Bocanegra é um vinho elaborado apenas com ela, na DO Alicante, pelas Bodegas Francisco Gómez, um produtor bastante recente que apenas há 10 anos produziu sua primeira safra de uvas. No entanto, a preocupação com a qualidade, a sustentabilidade e o respeito ao meio-ambiente fazem toda a diferença.
A cor rubi do vinho, com reflexos granada, já deixa perceber sua longa estrada. Mas eu acredito que escolhi o melhor momento para beber essa safra 2007: estava um espetáculo!
Apesar de o vinho estagiar por 14 meses em barricas de carvalho francês e americano (50% para cada), sua vigorosa estrutura responde com muita elegância à madeira, que passa quase desapercebida nos aromas, emprestando apenas complexidade, sem suplantar a fruta. O que se encontra no nariz são amoras e cerejas maduras, canela, mentol e notas de couro.
Mas é na boca que o vinho mostra toda a sua força, com agradável frescor, taninos perfeitamente domados e sedosos, muita corpulência e persistência, deixando um retrogosto achocolatado.
Recentemente o Bistrô Ouvidor abriu uma filial em Botafogo, situada à rua Bambina, 145 e o sommelier Efraim transferiu-se de mala e decanter para lá.
Quem quiser conhecer a nova casa terá a oportunidade de provar esse vinho do qual, infelizmente, ignoro a safra que está sendo oferecida. No entanto, sei o preço: você terá de desembolsar 110 reais para conhecer esse exótico e delicioso rótulo, que tantas boas lembranças me trouxe. Mas vale a pena!
Oscar Daudt
12/10/2014 |