Um bem muito precioso |
 Parafraseando Heródoto, pode-se dizer que Mendoza é um dom dos Andes! Fundada pelos espanhóis em 1561, fica localizada em pleno deserto, o que não a impede de ser uma das cidades mais arborizadas que eu conheço. Dá de dez na riquíssima Las Vegas, a outra cidade em condições assim adversas que eu conheço. A única fonte de água com que eles podem contar é a que desce do degelo dos picos nevados e essa água é toda canalizada para atender às necessidades dos moradores e da agricultura, que além da uva, tem importante produção de azeitonas, tomates, batatas e frutas. Quando os espanhóis lá chegaram, a região era habitada pelos índios huarpes que já desenvolviam suas plantações com a canalização das águas da cordilheira, uma estrutura que os conquistadores aproveitaram e desenvolveram.
Mendoza é belíssima, pois além da arborização extrema a que me referi, a cidade é emoldurada com o perfil nevado dos picos mais altos da cordilheira. E é bonito de se ver que em todos os meio-fios existe um canal a céu aberto onde corre a preciosa água, para aplacar a secura do clima local.
Com muitos restaurantes de altíssimo nivíssimo, maravilhosos hotéis e uma infinidade de vinícolas por perto para atrair os turistas, é um dos grandes programas para os amantes do vinho. Não é a toa que foi escolhida com uma das prestigiadas Great Wine Capitals, ao lado de outros ícones como Bordeux, Florença e Porto. |
Viagem proveitosa |
 Entre visitas, almoços e jantares, conhecemos um total de 37 vinícolas, a maioria de Mendoza, mas também representantes de San Juan, La Rioja, Salta e Neuquén. De vinhos, ainda não fiz a contabilidade, mas devem ter sido quase 200. Ainda bem que eu conseguia me segurar o dia inteiro, apenas degustando sem beber, o que às vezes configurava uma verdadeira tortura, visto a qualidade de muitos dos rótulos provados. Mas à noite, nos jantares, ninguém me segurava...
Com isso, pude ter uma noção bem abrangente da produção vitivinícola de nossos "hermanos". É uma história de absoluto sucesso que bem poderia servir de modelo para a indústria brasileira. Aliás, de muitos produtores ouvi a comemoração por ter, recentemente, a Argentina ultrapassado o Chile em termos de exportações para os Estados Unidos. Mas isso já é quase uma disputa paroquial.
Éramos apenas dois os convidados. Minha companheira de viagem foi a jornalista Liana Sabo (foto ao lado), do Correio Braziliense, a mais importante crítica de gastronomia da capital federal. Gaúcha de Ijuí, era também minha parceira nas rodadas de chimarrão que eu levava para as viagens até as vinícolas. |
A nova produção argentina |
 Nenhum país produtor possui uma relação carnal tão intensa quanto a que une a Argentina à Malbec, motivo de inveja para muitas regiões, que gostariam de contar com tal identidade. Acho que é impossível encontrar uma vinícola daquele país que não surfe na onda da Malbec e não produza pelo menos um rótulo. Com isso, o desejo de segmentação, principalmente em Mendoza, é quase palpável. No início, bebíamos vinhos da Argentina. Quando a qualidade da produção começou a melhorar, passamos a beber vinhos de Mendoza. Com a crescente concorrência, os vinhos passaram a ser de Luján de Cuyo ou do Valle de Uco. E agora, os produtores querem que a gente identifique que estamos bebendo vinhos de Tunuyán ou Lunlunta. Não dá... Eu confesso que parei no nível provincial. Apesar de já haver estado por duas vezes naquela região, não tenho idéia se Tupungato fica no Valle de Uco, ou se o Valle de Uco fica em Tupungato, ou se uma coisa não tem nada a ver com a outra... Imagine só o consumidor que nunca esteve por lá! Deve ser quase como um vinho do crioulo doido.
A Wines of Argentina presentemente desenvolve uma campanha para atrelar a Torrontés à Malbec. Não que isso seja muito necessário, pois grande parte dos consumidores já enxerga essa casta branca como o outro emblema de nossos vizinhos. Mas está no ar, com maciços investimentos, a frase "It takes two to tango". E o que pude constatar, nessa viagem é que a Torrontés melhorou muito nos últimos anos, abandonando os exageros aromáticos e buscando um vinho muito mais elegante e gastronômico.
De muita gente, no entanto, ouvi a preocupação com o que reserva o futuro. O que será do vinho argentino, se a fonte da Malbec secar? Se o consumidor internacional se cansar dessa casta? Eu pessoalmente acredito que a Malbec não é apenas uma moda, mas uma revolução que acertou o gosto do mercado em cheio. Mas as vinícolas já estão se aventurando com muitas outras castas além da Cabernet, da Merlot e da Chardonnay. Existe uma grande experimentação em curso, e nos brancos, pode-se detectar uma tendência com a Viognier, presente no portfolio de muitas casas produtoras. Ainda há o que melhorar com ela, mas se trilhar os caminhos da Torrontés, em breve teremos mais um grande vinho.
No terreno dos tintos, achei muito promissora a direção em relação à Cabernet Franc e à complicada Petit Verdot, com muitos e deliciosos rótulos varietais chegando ao mercado. Já na província de San Juán, a aposta dos produtores é com a Syrah, que tem apresentado excelentes resultados por lá. Neuquén não confessa, mas pode-se perceber que há uma tendência na experimentação da Pinot Noir naquela região. |
Enoturismo de qualidade |
 Sempre recebo muitos pedidos para dicas de viagem em Mendoza, mas como eu conhecia apenas a Ruca Malén, era só o que eu podia indicar. Agora, com esta extensa viagem, conhecendo inúmeras vinícolas, posso aqui passar algumas recomendações para quem quer viajar por lá.
Fazendo barba, cabelo e bigode, as vinícolas Vistalba, O. Fournier e Tapiz oferecem um serviço completo, com pousada, restaurante de classe internacional e diversas atividades programadas. O restaurante da Vistalba é nada menos do que o La Bourgogne, do chef Jean-Paul Bondoux, o mesmo do ultra-chique Hotel Alvear, de Buenos Aires. Na O. Fournier, o elegante e criativo restaurante já foi por 2 vezes escolhido como a melhor cozinha de vinícola da Argentina.
Acrescentando-se a essas 3 a Zuccardi, que não tem quartos, mas oferece uma desenvolvida estrutura turística, temos o quarteto que eu chamaria de imperdível.
A gigante Bodega Norton, também sem pousada, mas com o restaurante La Vid e diversificados programas elaborados para os amantes do vinho corre por fora e é outra boa alternativa. Também a Finca La Celia, com seus quartos construídos em 1890, um restaurante de cozinha regional e a maior extensão contígua de vinhedos daquele país, vale uma visita. A novíssima Belasco de Baquedano, com bom restaurante e uma sensacional Sala de Aromas, é outra bodega que não deve ficar de fora de um roteiro enoturístico, assim como a pequena Clos de Chacras, com seu excelente restaurante, magníficos jardins e caves centenárias que com certeza encantarão o viajante.
Na Escorihuela Gascón fomos por nossa conta, para jantar e como era de noite, a bodega estava fechada e não pudemos conhecer nada além do espetacular restaurante do chef argentino Francis Mallmann, que já comandou a cozinha do paulistano Figueira Rubaiyat. Não sei qual a estrutura turística deles, mas o restaurante 1884 é uma experiência inesquecível que vale uma visita por si só.
Uma vinícola que não visitei - apenas ouvi falar de seu representante - mas que não hesito em recomendar, é a Andeluna, cujo restaurante é comandado há 4 anos pelo chef Pablo del Rio, que recentemente abriu em Mendoza o Siete Cocinas, criativo restaurante argentino onde jantamos a convite de 4 vinícolas (veja a matéria sobre essa casa no 3° dia de viagem) Escolha o que você preferir: ou jante no centro de Mendoza ou aproveite uma passeio pelo Valle de Uco para almoçar no restaurante da Andeluna. |
Momentos curiosos |
 Toda viagem tem seus momentos curiosos, divertidos, surpreendentes, e esta não foi exceção. Confiram algumas passagens que valem a pena recordar:
Número 2: a Bodega Norton vende para o mundo inteiro um vinho que se chama simplesmente Privada; por motivos mais do que óbvios, o Brasil é o único país do mundo em que ele foi renomeado para Privado;
Oh! santa indecisão: a bodega Amalaya, de Salta, lançou um vinho que é um corte, mas que é comercializado como varietal de Malbec, e que se chama Gran Corte;
Sem saber das coisas: a gigante americana Kendall-Jackson, em sua fracassada aventura pelas terras mendocinas com a Bodega Tapiz, lançou um vinho para o mercado local que se chamava Mariposa; não vendeu nada, pois na gíria argentina essa palavra significa algo como maricón;
2 letras: há poucos meses, contei a história de um importador brasileiro que rebatizou, à revelia, a Bodega NQN para Malma, simplesmente porque a letra Q, em espanhol, tem o som de um curto palavrão brasileiro; imaginem o que ele não faria se fosse o importador do vinho da Zuccardi que se chama simplesmente Q;
Às pressas: na degustação da Bodega Norton, o impagável enólogo Jorge Riccitelli insistia em abrir mais e mais vinhos, muito embora estivéssemos com grande atraso na agenda; quando abruptamente nos levantamos para ir embora, ele ainda veio correndo atrás com 2 taças de um Malbec 1974 para degustarmos no carro;
Rio da Prata: os produtores argentinos chamam de corte platino os vinhos elaborados com a mistura de Malbec e Tannat; nada mais justo, já que eu duvido que alguém ainda lembre que essas duas castas são francesas.
Oscar Daudt |
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